domingo, 6 de fevereiro de 2011

Doce realidade de uma criança do norte



Logo quando completei 19 anos, minha vontade era de ir embora de Macapá. Queria ir bem pra longe, pois achava que aqui não era o meu limite. Na verdade, nem eu sabia qual era meu limite. Não tracei planos, não tinha foco, e nem perspectiva de nada. Apenas um namorado que, anos depois, conclui que ele é um sociopata. Assim me embrenhei pela selva de pedras que é São Paulo. Com sua noite sedutora, com seus meninos e meninas sedentos por carne nova. Sua vida cultural farta, em cada esquina a sensação de liberdade, de ser cosmopolita. Pronto, ali era meu limite provisório. Era exatamente onde eu sempre quis estar.

De repente, andando pelas calçadas da Rua Consolação, comecei a ver flashs da minha infância. Quando ia passar férias na fazenda dos meus pais, aquele cheiro de mato molhado, o galo cantando às seis da manhã, minha mãe sacudindo minha rede pra eu acordar. O funcionário trazendo a rede pesca para apanhar o almoço, as crianças remando rio à baixo para ir apanhar açaí do outro lado do igarapé, e o cachorro atrás da canoa, porque esqueceram de levá-lo na proa. Às dez da manhã minha mãe trazendo uma caneca de coalhada com farinha e açúcar, enquanto eu jogava o meu anzol no meio do rio. E na hora que o peixe mordia a isca, eu gritava pra ela voltar e ver o peixe que eu tinha pegado. Opa, já dá pra fazer no almoço. E ao meio dia em ponto, era aquela roda de moleques com prato enfiado entre as pernas, disputando quem comia tudo em menos tempo. E a tarde, quando a maré estava baixa, fazíamos bolas de futebol com meias velhas. As sandálias serviam de trave. E antes do anoitecer, as mães se reuniam para dar banho nos seus filhos no trapiche em frente à casa. Eram esponjas, sabonetes e punhos de aço para tirar tanta sujeira de moleques suados. À noite, parávamos para ouvir histórias de assombrações, barulhos na madrugada, lendas ribeirinhas, como a história que o boto engravidou uma moça da comunidade. Tinha tanto medo que pedia para minha mãe colocar minha rede colada na dela. Como era gostoso comer um peixe fresco, açaí batido na mão, queijo feito na hora, compotas de inúmeras frutas, correr atrás da galinha para fazer uma sopa à noite, dar uns socos na boca do filho do caseiro porque ele não deixou eu trazer a canoa na volta pra casa (as mães tinham que ficar espertas com seus filhos quando eu estava por perto, porque eu sentava o sarrafo nas suas crias). A vida era mais vida, os raios do sol brilhavam mais, o verde era mais verde, a doce realidade de ser uma criança do norte.

Saí do meu transe quando cheguei no cruzamento com a Av. Paulista. Sinal fechado, aquele paredão para atravessar a rua. Fumaça, buzina, o tempo correndo, a gente correndo da gente. Foi nesse momento que eu senti que algo me chamava. Mas eu passei muito tempo lutando contra essas lembranças, porque achava que fossem somente lembranças da infância. E então finalmente me rendi e voltei para o mesmo lugar para aprender a ter foco, direção, assim como as canoas que descem o rio.

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